segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Por um futuro colorido

Por Vera Ligia Rangel
A ideia de organizar o paint a Future, projeto que aposta na realização dos sonhos infantis, surgiu há sete anos. A artista plástica e curadora holandesa Hetty van der Linden, 64, estava na Argentina, em um evento com executivos, empresários e políticos locais. Durante o jantar, a mulher de um dos participantes contou que já tinha sido assaltada várias vezes por menores infratores na porta de um supermercado próximo. “Quando terminou o encontro, saí do restaurante sozinha, a pé, e me deparei com crianças pedindo dinheiro na rua. Dei os pesos que tinha na carteira e comecei a conversar com elas. Perguntei se tinham casa e família e o que faziam para sobreviver. Uma delas respondeu: ‘Nós roubamos madames no supermercado’. Eu fiquei muito impactada com a revelação”, diz.

A partir desse momento, Hetty sentiu que deveria unir os extremos, ricos e pobres, em prol de um mundo melhor. Só não sabia ao certo como viabilizar isso. Mas, pouco tempo depois, ela descobriu que artistas doavam parte das suas obras para um orfanato na Croácia, onde moravam crianças cujos pais morreram na guerra. Surgiu, então, o insight para o Paint a Future. De volta à Espanha, onde vivia, Hetty enviou um e-mail para amigos artistas: “Quem gostaria de vir a Toledo para pintar um mundo melhor?”. Em pouco tempo, o castelo que ela conseguiu disponibilizar para o evento ficou lotado de artistas que começaram essa ação solidária mundial, pintando quadros baseados em desenhos infantis.

Hoje, o projeto consiste em visitar regiões remotas de países como Brasil, Chile, Peru, Uruguai, Bósnia, Croácia, Madagáscar, Tunísia, Marrocos e Moldávia, munida de papel, pincéis, tinta e um desejo enorme de ajudar. Para chegar a esses vilarejos, Hetty vai até montada em mula quando não há acesso por carro. No local, reúne as crianças e pede para elas fecharem os olhos e imaginar seus desejos. Em seguida, orienta todas a usarem o pincel como se fosse uma varinha mágica e com ele desenhar seu maior sonho. São produzidos até 100 desenhos em um único dia. Mas Hetty não conta o que as crianças receberão em troca. “Não quero criar expectativas falsas”, diz. Os desenhos, entretanto, são entregues a vários artistas envolvidos no projeto. Eles escolhem alguns, se inspiram e recriam telas que são vendidas em museus e galerias. O dinheiro obtido é todo investido na realização dos desejos e das necessidades da criança autora dos desenhos.


Mundo de sonhos

Os meninos e garotas que participam do Paint a Future desejam desde coisas bem específicas, como um par de galinhas para garantir ovos a toda família, uma bicicleta, um computador ou um aparelho auditivo, até sonhos maiores, como uma casa ou uma escola. Nesses casos, muitas vezes, o dinheiro ajuda não apenas a criança que fez o desenho, mas também sua família e outros membros da comunidade. “Em Madagáscar, por exemplo, várias crianças desejavam estudar. Então, conseguimos montar uma escolinha”, diz Hetty. Há ainda desejos que só poderão ser concretizados na idade adulta. “Já tivemos o caso de um menino que sonhava ser caminhoneiro. Então, abrimos uma poupança para no futuro ele conseguir tirar a habilitação de motorista e talvez até dar a entrada num caminhão”, diz Hetty.

O Paint a Future ajudou mais de 1.000 crianças no mundo. Para sua realização, conta com o apoio de parceiros, como os donos de hotéis que se responsabilizam pelos custos de hospedagem dos artistas; a empresa holandesa Royal Talens, que doa telas, pincéis e tintas; além do apoio de bancos, galerias de arte e voluntários. Os artistas envolvidos são a peça-chave do trabalho, já que criam até dez quadros em cada evento sem receber nenhuma porcentagem pela venda deles.

Etapa brasileira
No Brasil, o Paint a Future atua há cinco anos. Desde o início, teve o apoio dos proprietários das pousadas Ilha do Papagaio, que fica na ilha do mesmo nome, próxima a Florianópolis, e Quinta do Bucanero, localizada na Praia do Rosa, também em Santa Catarina. “A ideia de trazer o projeto para cá foi do Bocão, dono da Quinta. Ele conheceu a Hetty em pleno deserto do Atacama, no Chile, e nos convenceu a patrocinar o evento”, diz Renata Sehn, sócia da Ilha do Papagaio.

A última versão do Paint a Future aqui aconteceu no início de maio. Durante 12 dias, artistas do mundo todo se revezaram entre as pousadas Natur Campeche, em Florianópolis, Ilha do Papagaio e Quinta do Bucanero para pintar quadros baseados em desenhos de crianças do Chile e do Peru. “Acho inspirador usar recortes do que a criança pintou em um quadro e fico feliz em beneficiar tanta gente”, diz a artista plástica holandesa Ria Nieswaag, 60 anos, que participa da ação desde o início. “Fiquei envolvido por este projeto e ele me dá inspiração para outros trabalhos”, afirma o artista argentino Alejandro Teves, 35 anos, que já produziu 17 quadros para o Paint a Future.

Durante esta temporada brasileira, Hetty contou ainda com a colaboração de artistas mirins muito especiais. Crianças da Apae — Associação dos Pais e Amigos dos Excepcionais — fizeram desenhos que se transformarão em quadros para auxiliar as crianças carentes da América do Sul. E também teve a ajuda de outras crianças que customizaram sandálias, cuja venda tem como objetivo ajudar uma comunidade peruana.

Passado e futuro
Quando questionada sobre os resultados do projeto, Hetty volta no tempo. Na infância, tinha dois sonhos: ser médica para cuidar da população da África ou ser Robin Hood para diminuir as injustiças. Ela não seguiu literalmente esse caminho, mas por meio do Paint a Future leva bem-estar para crianças que estão abaixo da linha da pobreza, utilizando doações daqueles que têm mais recursos. “Encontrei uma forma justa de realizar meu sonho. É gratificante ver uma criança doente que sobreviveu, outra que não tinha casa e agora tem onde morar”, diz. “Mas por enquanto ainda são milhares de sonhos, centenas de artistas e apenas dezenas de compradores”, afirma Hetty. O maior sonho da artista hoje? Ajudar pessoas em locais ainda mais distantes e expor e vender todos os quadros produzidos durante os eventos. Mais informações em http://www.paintafuture.org/.
Fonte: Revista Marie Claire

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